segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Textos sobre Angkor, de Diogo de Couto (1542-1616) e de Fr. João dos Santos (?- 1622)

painelDiogo de Couto
Tinha visitado Angkor, de onde vinha absolutamente fascinado e estava eu sentado na sala de espera do Aeroporto Internacional de Siem Reap, no Cambodja, enquanto aguardava o voo da Bangkok Air, justamente com destino a Bangkok, quando, com total surpresa, vejo na minha frente um painel com um texto escrito em português:
Mea legoa desta cidade
esta hum pagode chamado Angar
edificado em hum capo razo mui fermoso
O qual pagode he de 160
passos de cumprido de tão estranha fabrica,
que se não pode declarar por pena,
nem igualar nenhum outro edificio do mundo com elle
O corpo do meo he de quatro naves,
e o tecto da abobada riquissima,
que sobe em hum croucheo muito alto armado
sobre muitas columnas,
lauradas de todas as sutilezas,
que o engenho humano podia enventar, …
Diego Do Couto,Portugal 17th Century
Já tinha lido as “Décadas” do Diogo de Couto e não tinha lido este texto… Depois de algumas investigações que fiz, numa deslocação a Paris, encontrei na Biblioteca do Museu Guimet um livro onde está publicado o texto sobre Angor, do Diogo de Couto! Foi publicado em 1958, em França!
Bernard Philippe Groslier, ANGKOR ET LE CAMBODJE AU XVIe SIÉCLE D’APRÈS LES SOURCES PORTUGAISES ET ESPAGNOLES, ANNALES DU MUSÉE GUIMET, Presses Universitaires de France, 1958
Julgo que é a primeira vez que é publicado, embora já tivesse sido referido por diversos autores, nomeadamente por Charles Boxer.
Transcrevo, da publicação francesa, o texto, que não foi incluído nas Décadas e que se encontra na Torre do Tombo (Cod. 537 do Mss. da Livraria). O que existe não será da mão de Diogo de Couto, mas de um dos seus colaboradores. Neste texto, segundo Bernard Philippe Groslier, existe uma nota acrescentada posteriormente que é do seguinte teor:
Este capitolo não se ha de por, nem imprimir neste livro, porque uai na Sexta decada, por ser cousa que se descobrio no tempo do Viso Rey dom Afonso de Noronha.
E assim se poderá explicar a sua não inclusão nas Décadas.
No nº 11 da Revista Oriente, editada pela Fundação Oriente, juntamente com um portfolio de algumas fotografias que fiz em Angkor, foi também publicado o texto do Digo de Couto:
[fº 110 rº] Capitulo 6 da grande e admirável cidade que se discobrio nos matos do Reino Camboja e de sua fabrica e sitio.
1. Já que estamos desta parte, e temos falado no Reino de Camboja, pareceo nos bem darmos aqui relação de huma fermosissima cidade que se achou em seus matos, posto que isto pertencia a 6ª decada tempo do Viso Rej dom Afomso de Noronha, em que se discubrio, que por esquiçimento nos ficou, plo que a quis meter aqui por ser cousa raríssima, e que se pode ter por huma das maravilhas do mundo.
2. Andando El Rey de Camboja, quoasi nos de -50- ou -51- á caça dos Elefantes, plos mais espesos matos que avia en todo aquele Reino, forão os seus dar com huns Edifiçios cheos por dentro de mato brauio que não o poderão romper para entrarem por elle, 3. E damdo recado ao Rei, chegou aquela parte, e vendo a grandeza e soberba dos muros de fora, desejando de ver o de dentro, mandou logo cortar e por o fogo a tudo, 4. e se deixou ficar alli de longo de hum fermoso Rio, emquanto aquele negocio se fazia, no qual se ocuparão cinco ou seis mil homens, os quaes em breues dias, acabarão aquela obra, e alimparão toda a cidade por dentro e á roda por fora daquele mato serradissimo e altíssimo aruoredo, que a tinha avia muitos annos cuberta. 5. E depois de muito limpa de tudo, emtrou El Rej dentro, e correndo a toda, ficou admirado de grandeza daquele Edifiçio, 6. para o qual asentou logo de passar sua corte, porque alem da cidade ser da grande Magestade em fabrica, e o hera por sitio das melhores do mundo, por ser aquela parte frasquissima de aruoredos, Rios e fontes dagoas excelentes. 7. Hera esta cidade coadrada, e de quoadra a quoadra, húma legoa de compridão, 8. tinha quatro portas principais, a fora outra que hera a siruentia para os paços Reais, 9. e em cada coadra tinha hum fermoso beluarte da obra do muro, de que logo trataremos. 10. Tinha em roda huma caua de hum tiro despinguarda de largura, e de três braças dagoa de altura sem nunca deminuir. 11. Tem por sima sinco pontes que respondem as sinco portas, que se dise, e cada huma tem doze paços de largura, e todas armada sobre arcos de pedra de cantaria despantosa grandeza, e de huma, e outra parte, tem seus parapeitos [fº 110 vº], de rede de pedra como mármore, e por cima hum fermoso cordão mui bem laurado, e por elle a compasos iguoais, caualgados, huns gigantes da mesma pedra mui sotilmente laurados com as mãos nos mesmos cordõis, e todos tem orelhas furadas e cumpridas, como os canaras, por onde pareçe obra sua 12. os muros da cidade são todos de cantaria, tão primos, e bem ordenados, que parecem todos duma só pedra, que he como disse, quoasy marmore, porque se não exergua com que se ajuntão as pedras que são mui grandes nem com que se lião 13. o muro he de boa altura, e antes de chegar acima espaço de mea braça, ficão lançados para fora huns destes de pedra muito grandes e bem laurados, todos em hum compaço, e em cada dente caualgado hum fermoso gigante com as costas no muro, e nas mãos fermosas maças aleuantadas em alto, que parece que estão para dar em quem quizer sobir acima, 14. os portais de todas as portas, são fermosamente laurados e tudo da mesma pedra tão primo e sotil, que me disse o padre frei António da Madanela hordem dos capuchos que esteue nesta cidade, que muitas uezes tomara nas mãos os braços destes gigantes que são todos de huma pedra, para ver se herão laurados ao torno. 15. E o que he mais para espantar desta obra, que esta pedra toda a não há senão dalli a vinte legoas, plo que se pode ver a despeza, trabalho, fabrica e seruiço, que nella podia andar. 16. E asym em huma pedra que se achou sobre a porta de hum pagode de que logo falaremos, estauão humas letras em lingoa badagá, que he Canara, que dizia, que aquela cidade, pagodes, e mais cousas que logo diremos, fora mandada fazer por vinte reis, e que se gastara nella -700 annos-.
17. Tem esta cidade para huma banda começados huns edifiçios, que parece que herão pasos dos reis, porque a obra, magnifisensia e grandeza, logo paresião Reais, nas muitas collunnas de areste, folhagens, figuras, e outras lindezas que alegrauão a vista, e mostrauão o artefiçio de seus esculptores, 18. no meo da cidade, se via hum raríssimo pagode jnda jmperfeito, 19. de cada porta da cidade ate elle, se fazia huma rua da largura das partes de fora com seus parapeitos, laurados da mesma cantaria e obra como as de fora, 20. e de cada parte desta rua, vão outras causas muito fermosas cheas dagoas ate a margem, a qual sae do caua grande que cerca a cidade e entra pollas duas portas da banda do norte e leuante, e torna a entrar na mesma caua plas do sul e poente, de maneira, que nunca desfalece, a agoa desta caua, porque tanta quanta da por duas portas, torna [fº 111 rº] a recolher por outras duas, 21. e a caua grande sempre esta chea, por se meterem, nella grandes e prósperos rios, e pla sobegidão da agoa, he necessario sangra la por algumas partes por não tresbordar. 22. E asym por esta maneira cada rua destas que vai de cada porta, tem outras duas de agoa, plas quais emtrão muitas embarcasõis, que vem desse sertão plos rios abaxo com mantimentos, lenha, e mais cousas necessarias, que vão descarregar as portas dos moradores, que todos tem hum seruiço para a caua, e outro para o rio : 23. E por elle se a limpa a cidade de todas as jmundjcias que se leuão pla caua abaxo, de maneira, que depois que este Rej que discobrio esta cidade, pasou para elle sua corte, ficou a mais fermosa, mais bem seruida, e mais limpa que todas as do mundo.
24. Mea legoa desta cidade esta hum pagode chamado Angar, edificado em hum campo razo mui fermoso 25. o qual pagode he de -160- pasos de cumprido, de tão estranha fabrica, que se não pode declarar por pena, nem jgualar nenhum outro edifiçio do mundo com elle, 26. o corpo do meo, he de quatro naves, e o tecto da abobada riquíssima, que sobe em hum croucheo muito alto armado sobre muitas colunas, lauradas de todas as sutilezas, que o engenho humano podia enventar, 27. fabricou se sobre hum fermoso taboleiro de lageas mui grandes da mesma pedra de toda a mais obra, ao qual se sobe por alguns degraos que o singem todo em roda mui bem laurados e primos 28. de cada canto deste corpo grande do pagode, se aleuantão outros mais pequenos de obra que corresponde ao grande, e todos vão acabar em corucheos mui agudos, de maneira que de mais de quatro legoas se vê, todos dourados nos remates com seus globos e bandeiras 29. tem o pago(de) ao redor huma caua de hum tiro de mosquete de largo e de sete braços daltura, e por cima se faz huma ponta que responde a huma só porta que o pateo tem á entrada da qual estão dous trigues de pedra, hum de cada banda, tão próprio grandes, e espantosos, que temem terror, a quem per ella emtra : 30. toda a ponte he cuberta de arcos sotelissimamente laurados, de cantaria, cousa muito para ver 31. tem este pagode á roda muitas e fermosas oficinas, e os pillares das varandas e grades das janellas, da mesma pedra, tão bornidas que parecem feitas ao torno. 32. Plo grande campo ao redor, tem outros muitos pagodes somenos, mas mui bem obrados, que parece que herão sepulturas de Senhores daqueles Reinos, como o pagode de grande, dos Reis que o mandarão fabricar 33. duas legoas e meã deste pagode ao sertão, esta aquele grande lago que eu cudo que he o Chiamai, que será de trinta legoas de cumprido e dezasseis de largo, o qual [fº 111 vº] se enche da famoso Rio Menão que trás apos sy as agoas de outros muitos, o qual naçem de huma mesma via com o Ganges 34. ficara esta alagoa do mar para o sertão, cento e cincoenta legoas. 35. Tanto que entra o jnverno, que he em Junho, dese este Rio Menão das serras, com tanta força dagoa, que não cabendo em seu sentro, arrebenta por muitas partes, e alaga os campos mais de vinte legoas a roda, 36. e desendo ate outras grandes serras se desvia, e vai buscar caminho tirando para o noroeste, e como da nelle, se aparta em dous braços, e hum delles vaj entrar nesta grande alagoa que dise, e outro vaj deçendo ate o mar. 37. No tempo destas jmidasõis, sobe a mare do mar ate esta alagoa, que são -150- legoas que dise, o que dura per espaço de quatro meses, 38. e tanto que pasa o jnverno, que he em outubro, tornão estas agoas a vazar para o mar outros quatro mezes, e então se deminue a lagoa tanto, que ficara em deredor de três braças, tendo nas enchentes, de noue para des braças, 39. os outros quatros mezes do anno, que são Feuereiro, Março, Abril e Maio, emche, e vaza, conforme ao curso das luas.
40. Em hum serto tempo, sae do fundo desta alagoa, hum anno, e outro não, grande cantidade de darros com sua casca, a que na Índia chamão bate, que sostenta muito parte da gente das aldeas ao redor: 41. por onde parece que se cria em baxo como a sargaso, e que como he de vês arrebenta para cima, 42. e naquele tempo handão muitas almadias por esta alagoa, colhendo este arros com muitas festas, bailos, e tamgeres. 43. O Rej que discubrio esta cidade mandou acabar seus paços com exesiuos custos, e mudou para ali sua corte, e a pouoou de moradores que tirou das outras cidades do Reino, e lhe deu chãos e repartio herdades per fora para suas lauouras 44. Este Reino he serto que foi dos chins, e jnda oje goardão nelle suas leis e costumes, aos Regedores chamão se Mandarins, as moedas são taeis, e mazes, como na China, e os pezos os mesmos : 45. depois foi este Reino sogeito ao de Sião, e elle o deu a hum seu page Dobetele, o qual o pouoou e engrandeçeo. 46. Suas terras são tão fertis que val o candil darros, que são vinte alqueires -150- res 47. tem muitas vacas, bufaras, e tantos viados, que de suas pelles carregão naos para a China, que he a mercadoria de mor jmportançia que todas. 48. Nos matos há muitas cabras, porcos, merús, gazellas, e tantos elefantes, que afirmão ter aquele rei corenta mi, 49. casam nos desta maneira tem feito algumas çercas de grosa madeira, nas quaes emtrão por huma só porta que se fecha com groços alsapõis, 50. e na parte em que cutumão vir paser, lanção algumas fêmeas, que plo custume, e ensino [fº 112 rº] 51. tanto que vê elefantes, vão fogindo para a çerca e em os elefantes as vendo, as vão seguindo te entrarem pla porta, 52. e os casadores que esta em cima, largão logo as alsapõis, 53. e ficão metidos em hum cural, estreito, onde a poder de fome e çede os amansão, 54. e como os sentem domesticos os tirão dalli, e os metem em meo doutros elefantes manços e os leuão as tereçenas em que se agasalhão, 55. dizem que tem estes Rejs dous, e duas badas brancas, e não se entenda que seião como os cauallos pombos, se não de hum cor mais aberta que a ordinaria dos outros. 56. Tem outras muitas grandezas este Reino que dexo por não emfadar
DIOGO DE COUTO

1542 (Lisboa) – 10 de Dezembro de 1616 (Goa)
In Bernard Philippe Groslier, ANGKOR ET LE CAMBODJE AU XVIe SIÉCLE D’APRÈS LES SOURCES PORTUGAISES ET ESPAGNLES, ANNALES DU MUSÉE GUIMET, Presses Universitaires de France, 1958
*****
Também Fr. João dos Santos na sua obra ETHIOPIA ORIENTAL editada em Évora em 1609 e de que existe uma segunda edição na Bibliotheca de Classicos Portuguezes, Volume 2, Lisboa 1891/1892, se refere a Angkor.
RELAÇÃO DA CIDADE DE ANGKOR
Ainda que pareça desviar-me da historia, que tratei neste capitulo, da cristandade de Camboja, com tudo não deixarei de dizer alguma cousa de uma cidade que n’este reino se achou, estando eu n’estas partes, por ser uma cousa estranha e admiravel.

No tempo que o P. Fr. Silvestre andava no reino de Camboja, se descobriu uma cidade, a que chamam Angor, situada duzentas legoas pela terra dentro, começando a contar da entrada do rio; a qual estava despovoada, cheia de mato e herva, e habitada de bestas feras. Tinha uma muralha de quatro legoas em roda, toda de pedra de cantaria, posta uma sobre outra sem cal. Da banda de dentro tinha grande entulho, que chegava até o alto do muro, e da banda de fora sobre uma cava mui funda, de largura de um tiro de espingarda, cheia de agua. Havia dentro n’ella ainda uma rua muito larga, com signaes de grandes edificios, mas já todos derrubados. Estava no meio d’ella um grande templo dos idolos, e fóra da cidade muitos, um dos quaes tinha nove claustros, e n’este se acharam mais de doze idolos, todos de ouro mociço, e alguns como meninos de dez annos. Tinha quatro portas, e todas com suas pontes, que atravesavam a cava, de pedraria, com figuras de pedra lavradas, de muito feitio. Nunca se soube da fundação d’esta cidade, nem da causa porque se despovoou, que é uma cousa admiravel, e muito mais não haver pedra em todo este territorio, e haver-se de trazer para este edificio d’ali a trinta leguas, onde sómente há pedra com que se podia edificar. Vão a esta cidade com embarcações, e peto d’ella desembarcam em umas praias, que até então eram matos desertos e mui cerrados, habitados de feras. E hoje já estão esmontados e feitos caminhos para a cidade, aonde o rei de Camboja se passou com sua côrte, e n’ella vive. Os nossos religiosos estiveram n’ella, e os capuchos de S. Francisco, que me contaram estas cousas, e muita gente da India tem lá ido.
Fr. João dos Santos

Nasceu em Évora em data desconhecida -1622 Goa
In Fr. João dos Santos, ETHIOPIA ORIENTAL, Bibliotheca de Classicos Portuguezes, Volume 2, Lisboa 1891/1892., pag. 126/127.
A edição original, é datada de Évora, 1609

1 comentário:

  1. É interessante como por onde quer que andemos, nos deparamos sempre com algo que nos fala da nossa passagem por paragens tão longínquas...
    Belita

    ResponderEliminar